Política, Estado e Direito

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terça-feira, 19 de outubro de 2010

A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988, O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A LEI DA “FICHA LIMPA”, por Anildo Araújo

A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988, O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A LEI DA “FICHA LIMPA”

Quando a Constituição Federal foi promulgada, em 05 de outubro de 1988, há 22 anos atrás, nela já constava: “Art. 16. A lei que alterar o processo eleitoral só entrará em vigor um ano após sua promulgação.”

Celso Ribeiro Bastos, no livro “Comentários à Constituição do Brasil”, 2º volume, Editora Saraiva, página 596, informa que tal norma não constava nas Constituições Brasileiras anteriores, nem foi localizada norma semelhante nas Constituições de outros países. Para o saudoso jurista, o art. 16 (redação original) consagrava uma vacatio legis (período de vacância da lei), quando ela ainda não é aplicada, e não “o princípio da anualidade, vigorante relativamente aos tributos” (art. 150, inciso III, letra “b”, da Constituição de 1988, que trata “Das Limitações ao Poder de Tributar”).

Analisando o art. 16, da Constituição do Brasil, Celso Bastos (obra citada, página 597) explicou:

“(...) A preocupação fundamental consiste em que a lei eleitoral deve respeitar o mais possível a igualdade entre os diversos partidos, estabelecendo regras equânimes, que não tenham por objetivo favorecer nem prejudicar qualquer candidato ou partido. Se a lei for aprovada já dentro do contexto de um pleito, com uma configuração mais ou menos delineada, é quase inevitável que ela será atraída no sentido dos diversos interesses em jogo, nessa altura já articulados em candidaturas e coligações. A lei eleitoral deixa de ser aquele conjunto de regras isentas, a partir das quais os diversos candidatos articularão as suas campanhas, mas passa ela mesma a se transformar num elemento de batalha eleitoral.”


O art. 16, da Constituição Federal de 1988, foi alterado pela Emenda Constitucional nº 04, de 14 de setembro de 1993, passando a constar o princípio da anualidade: “Art. 16. A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência.

            Alexandre de Moraes, no livro “Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional”, 7ª edição, Editora Atlas, página 564, ao tratar do art. 16, explica:

“A legislação que alterar o processo eleitoral, por expressa disposição constitucional, não poderá ser aplicada ao pleito eleitoral que ocorrer até um ano da data de sua vigência.
Diferentemente da redação original da Constituição de 1988 (“A lei que alterar o processo eleitoral só entrará em vigor um ano após sua promulgação”), a atual redação, prevista pela EC nº 4/93, não prevê hipótese de vacatio legis constitucional, pois a lei que disciplinar o processo eleitoral poderá entrar em vigor imediatamente.
A previsão atual diz respeito à eficácia da nova legislação eleitoral, pois determina que sua produção de efeito somente se dê um ano após sua vigência.
Dessa forma, a alteração constitucional realizada pela EC nº 4/93 substitui a antiga previsão de vacatio legis eleitoral pelo princípio da anterioridade eleitoral, cuja finalidade é impedir alterações casuísticas que pretendam privilegiar determinados grupos políticos.”


Até a promulgação da Lei da “Ficha Limpa” (Lei Complementar Federal nº 135, de 2010, que alterou a Lei Complementar Federal nº 64, de 1990: Lei de Inelegibilidades), o Supremo Tribunal Federal já aplicou o art. 16 a vários casos. Antes de relatar alguns casos julgados, deve ser esclarecido que ao Supremo Tribunal Federal, em consonância com os ensinamentos de Hans Kelsen (“Quem deve ser o guardião da Constituição?”, no livro “Jurisdição Constitucional”, Editora Martins Fontes, páginas 237/298), compete “a guarda da Constituição” (art. 102, caput, da Constituição Federal de 1988).

No julgamento da Medida Cautelar da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 353, Relator Ministro Celso de Mello, ocorrido no dia 05 de setembro de 1990 – antes da Emenda Constitucional nº 04, de 1993 –, cujo objeto era a Lei Complementar Federal nº 64, de 1990 (Lei de Inelegibilidades), consta na ementa do acórdão do Supremo Tribunal Federal:

“- A norma inscrita no art. 16 da Carta Federal, consubstanciadora do princípio da anterioridade da lei eleitoral, foi enunciada pelo constituinte com o declarado propósito de impedir a deformação do processo eleitoral mediante alterações casuisticamente nele introduzidas, aptas a romperem a igualdade de participação dos que nele atuem como protagonistas principais: as agremiações partidárias e os próprios candidatos.
- A aplicação desse princípio constitucional está a depender da definição, a ser feita por esta Corte, do significado da locução ‘processo eleitoral’, bem assim do alcance e conteúdo de sua noção conceitual, de que derivarão os efeitos de ordem jurídico-temporal condicionantes da própria vigência, eficácia e aplicabilidade da lei impugnada.”


  No julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.345, Relator Ministro Celso de Mello, ocorrido em 25 de agosto de 2005, cujo objeto era a Resolução nº 21.702, de 2004, do Tribunal Superior Eleitoral (que definiu os critérios a serem observados, pelas Câmaras Municipais, na fixação do respectivo número de Vereadores), consta na ementa do acórdão do Supremo Tribunal Federal (publicada no Diário Oficial da União, Seção 1, dia 03 de setembro de 2010, páginas 1/2):

PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA ANTERIORIDADE ELEITORAL: SIGNIFICADO DA LOCUÇÃO ‘PROCESSO ELEITORAL’ (CF, ART. 16).
- A norma consubstanciada no art. 16 da Constituição da República, que consagra o postulado da anterioridade eleitoral (cujo precípuo destinatário é o Poder Legislativo), vincula-se, em seu sentido teleológico, à finalidade ético-jurídica de obstar a deformação do processo eleitoral mediante modificações que, casuisticamente introduzidas pelo Parlamento, culminem por romper a necessária igualdade de participação dos que nele atuam como protagonistas relevantes (partidos políticos e candidatos), vulnerando-lhes com inovações abruptamente estabelecidas, a garantia básica de igual competitividade que deve sempre prevalecer nas disputas eleitorais. Precedentes.
- O processo eleitoral, que constitui sucessão ordenada de atos e estágios causalmente vinculados entre si, supõe, em função dos objetivos que lhe são inerentes, a sua integral submissão a uma disciplina jurídica que, ao discriminar os momentos que o compõem, indica as fases em que ele se desenvolve: (a) fase pré-eleitoral, que, iniciando-se com a realização das convenções partidárias e a escolha de candidaturas, estende-se até a propaganda eleitoralrespectiva (sic); (b) fase eleitoral propriamente dita, que compreende o início, a realização e o encerramento da votação e (c)fase (sic) pós-eleitoral, que principia com a apuração e contagem de votos e termina com a diplomação dos candidatos eleitos, bem assim dos seus respectivos suplentes. Magistério da doutrina (JOSÉ AFONSO DA SILBA e ANTONIO TITO COSTA).”


            No julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.685, Relatora Ministra Ellen Gracie, ocorrido em 22 de março de 2006, o Supremo Tribunal Federal estabeleceu a observância do art. 16, inclusive pelas Emendas Constitucionais (EC nº 52, de 2006):

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ART. 2º DA EC 52, DE 08.03.06. APLICAÇÃO IMEDIATA DA NOVA REGRA SOBRE COLIGAÇÕES PARTIDÁRIAS ELEITORAIS, INTRODUZIDA NO TEXTO DO ART. 17, § 1º, DA CF. ALEGAÇÃO DE VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA ANTERIORIDADE DA LEI ELEITORAL (CF, ART. 16) E ÀS GARANTIAS INDIVIDUAIS DA SEGURANÇA JURÍDICA E DO DEVIDO PROCESSO LEGAL (CF, ART. 5º, CAPUT, E LIV). LIMITES MATERIAIS À ATIVIDADE DO LEGISLADOR CONSTITUINTE REFORMADOR. ARTS. 60, § 4º, IV, E 5º, § 2º, DA CF.
1. Preliminar quanto à deficiência na fundamentação do pedido formulado afastada, tendo em vista a sucinta porém suficiente demonstração da tese de violação constitucional na inicial deduzida em juízo.
2. A inovação trazida pela EC 52/06 conferiu status constitucional à matéria até então integralmente regulamentada por legislação ordinária federal, provocando, assim, a perda da validade de qualquer restrição à plena autonomia das coligações partidárias no plano federal, estadual, distrital e municipal.
3. Todavia, a utilização da nova regra às eleições gerais que se realizarão a menos de sete meses colide com o princípio da anterioridade eleitoral, disposto no art. 16 da CF, que busca evitar a utilização abusiva ou casuística do processo legislativo como instrumento de manipulação e de deformação do processo eleitoral (ADI 354, rel. Min. Octavio Gallotti, DJ 12.02.93).
4. Enquanto o art. 150, III, b, da CF encerra garantia individual do contribuinte (ADI 939, rel. Min. Sydney Sanches, DJ 18.03.94), o art. 16 representa garantia individual do cidadão-eleitor, detentor originário do poder exercido pelos representantes eleitos e ‘a quem assiste o direito de receber, do Estado, o necessário grau de segurança e de certeza jurídicas contra alterações abruptas das regras inerentes à disputa eleitoral’ (ADI 3.345, rel. Min. Celso de Mello).
5. Além de o referido princípio conter, em si mesmo, elementos que o caracterizam como uma garantia fundamental oponível até mesmo à atividade do legislador constituinte derivado, nos termos dos arts. 5º, § 2º, e 60, § 4º, IV, a burla ao que contido no art. 16 ainda afronta os direitos individuais da segurança jurídica (CF, art. 5º, caput) e do devido processo legal (CF, art. 5º, LIV).
6. A modificação no texto do art. 16 pela EC 4/93 em nada alterou seu conteúdo principiológico fundamental. Tratou-se de mero aperfeiçoamento técnico levado a efeito para facilitar a regulamentação do processo eleitoral.
7. Pedido que se julga procedente para dar interpretação conforme no sentido de que a inovação trazida no art. 1º da EC 52/06 somente seja aplicada após decorrido um ano da data de sua vigência.” (grifei)


            No julgamento dos Recursos Extraordinários (dentre eles, o RE nº 630.147, Relator Ministro Ayres Britto), no Supremo Tribunal Federal, dias 22 e 23 de setembro de 2010, sobre a aplicabilidade imediata das alterações produzidas pela Lei da “Ficha Limpa”, que resultou no empate de 5 votos, deixaram de serem observados os julgados citados, um deles publicado há poucos dias no Diário Oficial da União.

            Dentre os votos dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, no referido julgamento da Lei da “Ficha Limpa”, consta no Informativo STF nº 601 (“Lei da ‘Ficha Limpa’: Inelegibilidade e Renúncia” itens 9 e 10), o correto entendimento do Ministro Dias Toffoli (que foi advogado do Partido dos Trabalhadores e do atual Presidente da República – Lula – em várias eleições, inclusive perante o Tribunal Superior Eleitoral), que, juntamente com os Ministros Gilmar Mendes, Marco Aurélio, Celso de Mello e Cezar Peluzo, votou pela observância do art. 16 da Constituição Federal:

            “Em divergência, o Min. Dias Toffoli proveu os recursos, exclusivamente no que se refere à afronta ao art. 16 da CF. De início, assinalou que embaraços ao direito à elegibilidade deveriam ser compreendidos sob perspectiva histórica, especialmente quando razões de natureza moral poderiam ser invocadas para fins de exclusão política de segmentos incômodos ao regime. Em seguida, afirmou que o princípio da anterioridade das leis eleitorais não distinguiria as espécies de leis nem o conteúdo dos seus dispositivos, sendo, pois, genérico, direto e explícito. Asseverou que a jurisprudência da Corte inclui o art. 16 da CF no rol de garantias individuais da segurança jurídica e do devido processo legal, e que tal postulado seria dirigido ao cidadão-eleitor. Consignou, ademais, que o dispositivo constitucional visaria evitar a quebra da previsibilidade das condições subjetivo-políticas dos candidatos e que, relativamente ao desrespeito aos limites temporais desse preceito, o que importaria seria a quebra da anterioridade e não o período no ano em que ela ocorrera, dado que a diferença estaria apenas no grau de intensidade do prejuízo.
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Mencionou que a anualidade eleitoral também teria por fundamento a igualdade e defesa das minorias, cuja participação no processo político não deveria ficar submetida ao alvedrio das forças majoritárias. Tendo tudo isso em conta, entendeu que não se poderia distinguir o conteúdo da norma eleitoral selecionadora de novas hipóteses de inelegibilidade, porquanto seria ele alcançável pelo art. 16 da CF por afetar, alterar, interferir, modificar e perturbar o processo eleitoral em curso. Assinalou que a alínea k restringira o universo de cidadãos aptos a participar do pleito de 2010. Indagou, então, quais seriam as conseqüências práticas dessa inovação legislativa se, ao inverso, ela ampliasse o elenco de concorrentes, por meio da subtração de hipóteses de inelegibilidade, com eficácia para as eleições atuais. Concluiu que, em nome de princípios moralizantes, os quais limitam a participação de indivíduos no processo eleitoral, não se poderia ignorar, por outro lado, o postulado, abstrato e impessoal, veiculado no art. 16 da CF, que protege a própria democracia contra o casuísmo, a surpresa, a imprevisibilidade e a transgressão da simetria constitucional dos candidatos a cargos eletivos. Assim, reputou que, se admitida a eficácia imediata da LC 135/2010, no que concerne exclusivamente à situação dos autos, abrir-se-iam as portas para mudanças outras, de efeitos imprevisíveis e resultados desastrosos para o concerto político nacional. Registrou, por derradeiro, que cumpriria reconhecer a aplicação do art. 16 da CF ao plano de eficácia da LC 135/2010.”


No Informativo STF nº 601, consta ainda (“Lei da ‘Ficha Limpa’: Inelegibilidade e Renúncia” item 11):

“Os Ministros Gilmar Mendes, Marco Aurélio, Celso de Mello e Cezar Peluso seguiram a divergência, mas proveram os recursos extraordinários em maior extensão por também considerarem que a situação advinda com a renúncia do primeiro recorrente ao cargo de parlamentar — devidamente constituída segundo a legislação da época — não poderia ser alcançada pela LC 135/2010. Em seguida, ante o empate na votação, deliberou-se sobre a solução a ser dada para a proclamação do resultado do julgamento. Afastou-se proposta segundo a qual se deveria aguardar a indicação de novo Ministro para compor a Corte, bem como a de se convocar Ministro do STJ. Citaram-se, também, dispositivos do Regimento Interno do Supremo, o art. 97 da CF e a Súmula Vinculante 10. Tendo em conta não se ter chegado, no caso, a um consenso quanto ao dispositivo que se aplicaria em face da vacância, o julgamento foi suspenso [RISTF: ‘Art. 13. São atribuições do Presidente: ... IX – proferir voto de qualidade nas decisões do Plenário, para as quais o Regimento Interno não preveja solução diversa, quando o empate na votação decorra de ausência de Ministro em virtude de: a) impedimento ou suspeição; b) vaga ou licença médica superior a 30 (trinta) dias, quando seja urgente a matéria e não se possa convocar o Ministro licenciado. ... Art. 146. Havendo, por ausência ou falta de um Ministro, nos termos do art. 13, IX, empate na votação de matéria cuja solução dependa de maioria absoluta, considerar-se-á julgada a questão proclamando-se a solução contrária à pretendida ou à proposta. Parágrafo único. No julgamento de ‘habeas corpus’ e de recursos de ‘habeas corpus’ proclamar-se-á, na hipótese de empate, a decisão mais favorável ao paciente. ... Art. 173. Efetuado o julgamento, com o quorum do art. 143, parágrafo único, proclamar-se-á a inconstitucionalidade ou a constitucionalidade do preceito ou do ato impugnados, se num ou noutro sentido se tiverem manifestado seis Ministros. Parágrafo único. Se não for alcançada a maioria necessária à declaração de inconstitucionalidade, estando licenciados ou ausentes Ministros em número que possa influir no julgamento, este será suspenso a fim de aguardar-se o comparecimento dos Ministros ausentes, até que se atinja o quorum.’].


            Diante do empate, da inobservância do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal pelo seu Presidente e dos brocardos jurídicos narra mihi factum dabo tibi (narra-me o fato e dar-te-ei o direito) e jura novit curia (o juiz ou a Corte conhece o direito), verifica-se o auge da Crise da justiça e do Poder Judiciário no Brasil, bem como do enfraquecimento da Constituição Federal (reiteradamente emendada e remendada), das instituições jurídicas, dos princípios constitucionais e jurídicos, etc.

            Em seus 22 anos de existência, a Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 05 de outubro de 1988 está em compasso de espera, diante do empate, da inobservância dos precedentes do Supremo Tribunal Federal por alguns ministros da Corte...

            Brasília-DF, 05 de outubro de 2010.


ANILDO FÁBIO DE ARAÚJO
Advogado, Procurador da Fazenda Nacional, leitor dos Diários Oficiais e da Justiça,
Especialista em Ordem Jurídica e Ministério Público, em Direito Processual Civil e
em Direito Público
OAB/DF 21.077

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