Política, Estado e Direito

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quinta-feira, 11 de novembro de 2010

O Ministério Público e a “prerrogativa” de tomar assento à direita dos Juízes: comportamento inconstitucional

Anderson Rosa Vaz


Segregações espaciais são típicas de situações discriminatórias. Delimitações de espaços físicos denotam, no mais das vezes, privilégios de uns em detrimento de outros. Elas podem ser originárias de questões raciais ou étnicas, como nos EUA do século XVII e seguintes, ou o Apartheid na África do Sul, adotado oficialmente em 1948 e que durou até a década de 90 – a propósito a palavra de origem africana quer dizer “separação”, “distanciamento espacial”. Pode-se lembrar, ainda, dos campos de segregação e extermínio de minorias étnicas, religiosos e deficientes físicos da Alemanha Nacional Socialista da década de trinta. O apartamento espacial pode se dar também em função de condições econômicas – há estudos sociológicos que indicam que os mais pobres são “afastados” das políticas, serviços e instrumentos públicos potencializadores de vida digna, enquanto os mais riscos se ilham em condomínios fechados aos moldes medievais. Segregações legitimadas por ordens religiosas também merecem lembrança. Mesmo no plano de políticas internacionais, as redes de decisões são formadas grupos auto-segregados – G5, G7, G8, G20. Enfim. Quantos muros ainda não são erguidos nos espaços públicos!
Percebe-se que o mundo está muito mais topograficamente delimitado do que intuitivamente se faz acreditar. Nessa (des)ordem (des)igual das coisas, um eficiente aparelho de equilíbrio, no Brasil recente, é o Ministério Público. Constitucionalmente defensor do regime democrático, do primado da igualdade e da isonomia, bem como protetor dos interesses sociais, trata-se de instituição absolutamente importante no processo de eliminação de barreiras, muros, distâncias, injustiças e desigualdades.
Pois bem. Simbologias a parte, a partir dessa leitura de mundo – dentro/fora, direita/esquerda, centro/periferia, norte/sul, abaixo/acima –, questão interessante refere-se à posição física que deve ser ocupada pelo membro do Ministério Público em audiências perante o Poder Judiciário. Uma resposta rápida pode ser extraída Lei n. 8.625/1993, que institui a Lei Orgânica Nacional do Ministério. Em seu art. 41, XI, está definido que constitui prerrogativa do Ministério Público tomar assento à direita dos Juízes de primeira instância ou do Presidente do Tribunal, Câmara ou Turma. No mesmo sentido o art. 18, I, “a”, da Lei Complementar 75/93 que dispõe sobre a organização, atribuições e o estatuto do Ministério Público da União. Em uma exegese meramente literal – porém sempre insuficiente – a questão proposta estaria resolvida. Contudo, observemos a situação por outra perspectiva.
Prima facie, há que se considerar duas situações funcionais do Ministério Público: como fiscal da lei e como parte no processo. A primeira situação não parece causar tanto embaraço. Por não ser parte, pode-se entender natural uma posição física diferenciada daquela destinada às partes. Ademais, condição semelhante acontecerá com testemunhas, depoentes, peritos etc. Em condições desiguais, tratamentos diferenciados são esperados. Impróprio mesmo será quando o Ministério Público participar da audiência em local diferenciado, mas na condição de parte. Tem-se aí uma óbvia situação de igualdade, que como tal deveria ser tratada: ou todos os advogados da parte adversa são convidados a se assentarem no mesmo plano do juiz – e se houver advogado assistente da acusação, nas hipóteses em que isso é possível, deveria ser convidado para se assentar também à direita do juiz(?) –, ou, hipótese obviamente mais razoável, o membro do Ministério Público, em nome da igualdade processual e devido processo legal, deve se assentar no espaço destinado às partes – interpretação sistemática e teleológica.
O Superior Tribunal de Justiça tem entendimento que essa prerrogativa, de assento diferenciado, justifica-se por conta das “relevantes funções” desempenhadas pelo Ministério Público (RMS 19881/RJ). Ora, isso quer dizer que as funções dos membros da OAB, que não se assentam ao lado dos magistrados, não seriam relevantes?  Função relevante, expressão vaga, ambígua e ideologicamente manipulável, seria justificativa legítima para discriminações e apartamentos?
Interessante registrar que o Conselho Nacional do Ministério Público, mediante provocação de membro do parquet, apreciou a possibilidade de se recomendar ao Conselho Nacional de Justiça providências no sentido de se obrigar a construir, nas salas de audiências do Poder Judiciário, assentos destinados ao MP no mesmo plano físico dos magistrados. Sabiamente, o próprio CNMP, por meio do processo 679/2007, decidiu não conhecer do pedido.
Ademais, o Supremo Tribunal Federal, desde 1994 – observe que as legislações são de 1993 –, em decisão lapidar, decidiu abandonar a interpretação literal dos dispositivos legais acima mencionados para considerar inconstitucional a exigência de membros do Ministério Público se assentarem no mesmo nível geográfico dos juízes. Evocando a teoria da paridade das armas e o respeito ao devido processo legal, o STF decidiu que acusação e defesa devem estar em igualdade de condições, não sendo possível, constitucionalmente, interpretação de normas reveladoras da ordem jurídica que deságüe em tratamento preferencial (RMS 21884/DF).
Portanto, seria razoável que os membros do Ministério Público, defensores legítimos que são da eliminação de toda e qualquer situação de segregação injusta (social, religiosa, econômica, física ou simplesmente funcional), declinarem, por conta própria, da possibilidade fática de se assentarem ao lado direito dos magistrados. Não o fazendo, é dever dos juízes o impedimento de tal inconstitucionalidade, em benefício da imparcialidade e da eqüidistância dos litigantes. Se ambas as hipóteses não se concretizarem, compete ao advogado, no exercício de suas prerrogativas e na defesa dos interesses de seus constituintes e do próprio curso regular do processo, fazer a impugnação oral e imediata de tal situação. Se o vício não for corrigido pelo presidente da audiência, deve-se alegar, em instância superior, nulidade do processo. Ademais, as próprias entidades de classe envolvidas, como associações de magistrados e OAB, deveriam se posicionar oficialmente sobre o assunto. A eliminação de pequenas barreiras, aparentemente simbólicas, pode significar muito no plano das relações sociais e institucionais.


Um comentário:

  1. Muito pertinente as palavras Dr Anderson Vaz, ja havia pensado nisso, mas as informações trazidas neste artigo embasa muito bem mais um modelo de segregação, na oportunidade chamo a atenção para o denominado banco dos Réus que também se mostra uma "condenação antencipada", fugindo a regra do princípio da inocência presumida.

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